Hoje eu estava conversando pelo messenger com um ex-namorado francês. Desde que nos vimos pela última vez, há 5 anos, falamo-nos pouco, mas ficou sempre um carinho muito grande guardado e os contatos que tivemos por telefone e por email foram muito calorosos.
Conversamos um bocado sobre a vida, atualizando as novidades de cada um: onde estamos morando, o que temos feito etc.
Lá pelas tantas, falei para ele: você ainda não me falou TUDO sobre sua vida, pode contando os detalhes. Sei lá por que disse isso, mas queria saber mais mesmo da vida dele.
Ele levou um tempo para escrever e eu meio que pressentia o que ele estava prestes a me contar: terminou relacionamento, altos e baixos e recentemente descobriu ser hiv+.
Meu coração acelerou, eu levei um susto, pedi para ele parar tudo, respirei, perguntei como assim?, falei que estava impactado e que não acreditava no que ele estava me dizendo. Parecia que eu já imaginava isso, mas meu susto foi tão grande que ele me pediu desculpas por ter falado de maneira tão direta, que não havia outra forma de dizer tal coisa etc. Rapidamente eu falei que ele não precisava pedir desculpas e lhe falei de meu status. Aí o susto foi dele, que ainda perguntou por que eu nunca lhe dissera. Expliquei que não saio divulgando isso aos 4 ventos, que obviamente acabaria dizendo algum dia, mas pela distância e pelos contatos muito raros, não houve razão para que eu falasse. Ele entendeu e falou que ele também é muito reservado quanto ao status dele.
Daí pra frente, conversamos sobre o assunto, sobre a nova realidade, o medo da rejeição, os medos em geral. Foi engraçado, um tentando colocar o outro para cima, ajudando o outro a romper com seus próprios preconceitos e barreiras...
Uma coisa que ele falou que me tocou: há alguns meses lhe enviei uma foto minha que ficou muito boa. Ele recebeu e não teve coragem de responder, como se fosse um símbolo de uma outra vida que ele não poderia ter de novo. Foi mais ou menos na mesma época em que ele descobriu ser hiv+ e a minha foto era a lembrança de um outro tempo, de uma outra vida. Entendi perfeitamente, também sinto isso: um tempo em que tínhamos escolha, quando havia maior liberdade para viver as experiências.
Pensei nisso, no que significava essa "liberdade" -- que acabamos aproveitando mal (deixando de nos cuidar?), mas também por que essa liberdade havia acabado.
Afinal de contas, de onde vêm as barreiras que cerceiam essa "liberdade"? E mais: que liberdade é essa que acreditamos ter e que, pior!, acreditamos perder?
Na era do consumo, blá blá blá, hedonismo, blá blá blá, prazeres e relacionamentos descartáveis, blá blá blá, acreditamos que tudo pode ser usado e dispensado, como se as relações, as coisas, os afetos e até mesmo as pessoas fossem descartáveis, como se nós mesmos fôssemos recicláveis, autolimpantes. Uma experiência é apenas uma experiência, entra para um banco de dados e logo pulamos para o próximo registro. Sem qualquer moralismo (seria hipócrita de minha parte), usamos nossos corpos, afetos e relações de maneira irresponsável sim. A fidelidade conjugal está sendo relativizada até o limite, o sexo casual está se tornando uma prática corriqueira, os encontros e desencontros estão cada vez mais rápidos. O processo de se criar um relacionamento está truncado, as etapas de formação da intimidade estão invertidas e quando não dá certo (surpresa!) logo partimos para outra. Hoje o que eu mais ouço é: "ninguém quer nada sério", mas esse "ninguém" nunca inclui o declarante.
Quando falamos da perda da liberdade que acreditávamos ter, falamos de uma posição confortável, da qual se pode experimentar coisas e pessoas e sempre manter abertas muitas portas à nossa frente. Por conta dos estigmas da doença e de toda a rejeição a que estamos expostos, estas portas se fecham e saímos do nosso conforto.
Mas o engano começa antes mesmo de o hiv entrar em nossas vidas. Tal liberdade não existe. Simplesmente continuamos com os mesmos medos que sempre tivemos, com o agravante fator hiv+ que requer uma abordagem mais responsável e cuidadosa em relação a nós mesmos e ao outro. Mas essa responsabilidade e esse cuidado não deveriam estar condicionados ao status hiv.
Sério, consciente da necessidade de lutar contra toda carga de culpa, senti em muitos momentos que o hiv vem apenas me mostrar o que eu já deveria saber desde sempre: é preciso respeitar meu corpo, minha integridade física e emocional, a saúde dos meus relacionamentos; é preciso reconhecer o outro como digno do mesmo respeito e a relação que surge do encontro como algo quase sagrado do que há de mais belo entre dois seres humanos -- o potencial de se cultivar amor e criar uma nova realidade, uma nova vida. E o impacto desse amor sobre as outras pessoas.
Não somos tão livres se estamos presos a condicionamentos e instintos. Logo, não se pode perder o que não se tem. Liberdade é aprender a amar verdadeiramente a si mesmo e ao outro. Não há amor que não seja libertador. E esse amor, quando surge, não se limita por nada, nem mesmo por um vírus. Assim espero.