quarta-feira, 3 de junho de 2009

surpresas

Então ele veio me visitar pela primeira vez depois de saber de meu status. Entrou no carro todo feliz, com uma excitação na voz que aceleradamente tentava expressar um grande fluxo de idéias e sentimentos. Disse que na noite anterior, depois de nos falarmos ao telefone, ligou a tv e estava passando o documentário do Stephen Fry, Hiv and Me (post sobre este doc aqui). "Ele é um cara do seu tempo, ele está ligado na contemporaneidade... e esta é uma doença contemporânea, temos que conviver com ela e aceitá-la até mesmo para poder combater sua propagação. Eu posso estar contaminado e nem saber, qualquer um pode!" Ele sempre consegue me surpreender! Conversamos um bocado sobre o Fry e esta questão toda, um papo que rolou naturalmente e com muito carinho de parte a parte. Ele estava certo de sua escolha: estamos juntos nessa. 

No restante do tempo, tudo fluiu naturalmente, até o sexo foi bem natural e sem neuras. Mas um dia de manhã, ao acordar, ainda de olhos fechados ele falou: "Se eu estiver positivo você vai me ajudar, me orientar como lidar com isso?" Atonitamente, perguntei: "Por que você está falando uma bobagem dessas?  Por que esse assunto agora?" E ele: "Nada, apenas penso que pode ser uma possibilidade, a gente nunca sabe...."

Não fiquei com mosca atrás da orelha até porque nosso diálogo não deixa muita margem para pirações e mensagens subliminares, então deixei rolar.

Contudo, se todos tivessem a consciência da importância de fazer o exame anti-hiv e saber seu status, com certeza muita coisa poderia mudar na progressão desta pandemia. Eu fiquei sabendo num exame de rotina, jamais esperaria um resultado positivo àquela altura. Imagino que muitas outras pessoas poderiam igualmente se surpreender e poder lidar com o problema, acompanhando a progressão da doença e evitando o pior. C. me prometeu que vai fazer o exame em breve.

Voltando ao Rio, ele foi ao clínico que atende sua família para ver uma gripe persistente e pegar pedido para o exame. Eu não sei o que o médico falou, mas detonou alguma crise nele. De alguma forma, a reação do médico fez com ele que ficasse pirado mas ele não me falou nada (passada a crise, ele só conseguiu me dizer que o médico foi "moralista").

Sem transparecer nada para mim, sem me contar nada, ele lidou sozinho com essa crise até ir ver o terapeuta dele, dois dias depois. Talvez por também ser médico, mas certamente por ter uma empatia maior com C. e não ser tão "moralista", ele conseguiu ajudá-lo a colocar a cabeça em ordem. Só então, na véspera de voltar a me ver, C. me contou que algo havia se passado, mas não entrou em maiores detalhes. Pedi que, sempre que possível, ele se abrisse comigo e falasse sobre os medos e anseios que pudessem surgir em relação ao meu status e nosso relacionamento. Mas também falei que nem sempre é possível lidar com esses conteúdos em tempo real.

Foi quando eu soube que ele teve dois sonhos (que não quis me contar em detalhes) e que ele havia se sentido incomodado porque depois de saber de meu status, ele mudou um pouco seu comportamento na cama comigo -- o que reparei e achei absolutamente normal, mas ele ficou incomodado talvez por achar que deveria ter sido mais natural -- o que neste contexto quase significaria ser menos zeloso.

Quando nos revimos, nosso reencontro correu muito naturalmente, passamos o dia juntos, estivemos em Campos do Jordão onde comemos um fondue super romântico, passamos momentos ótimos sempre conversando muito e se curtindo muito, mas não chegamos a tocar no assunto em nenhum momento. À noite, quando voltamos para casa, uma surpresinha para mim: uma sacolinha de presente cheia de camisinhas com sabor. Fiquei muito emocionado com o gesto e o cuidado dele.

Para quem não convive diretamente com o problema, pode não fazer muito sentido, mas para mim foi uma expressão de muito carinho e amor, um detalhe que pode fazer muita diferença e tornar nossa sexualidade mais natural e gostosa, sem neuras nem incômodos.

A questão do sexo oral e hiv é um tanto esquisita porque mesmo sabendo que há riscos (obviamente não mensuráveis), quase ninguém toma cuidado com a prática de sexo oral 100% protegido (do início ao fim) -- a não ser que tenha certeza que o parceiro seja realmente soropositivo. Num relacionamento sorodiscordante, tomar esse cuidado é muito importante, mas para mim foi uma surpresa ele ter vindo com essa solução criativa e gostosa de uma forma tão carinhosa: o presente era para mim, não foi um recurso que ele sacou da manga na hora H, entendem? E eu me senti realmente presenteado por saber que estou com uma pessoa disposta a estar comigo sem abrir mão do prazer nem da segurança. 

Quanto ao médico moralista, sei que há muitos por aí que não apenas não entendem a questão do hiv no contexto homoafetivo assim como há até cirurgiões que se negam a operar um soropositivo que precise de uma cirurgia. A ignorância (e consequentemente, o medo) não é exclusividade dos que não têm acesso à informação. O que torna nossa luta contra o preconceito ainda maior, pois sempre se acreditou que campanhas informativas seriam suficientes para erradicar os estigmas da doença -- um fator-chave no combate à sua disseminação.